O dedo que pressiona a lata de spray transpõe as cores que se transformam em botos, sauins, árvores, céu e índios nas mãos do grafiteiro Raiz. O artista de 24 anos, nascido na Bahia e criado no interior do Amazonas, não nega sua vivência amazônica e chama atenção pelas imagens que transbordam a cultura regional, principalmente, pela representação indígena.
A retratação dos índios como forma de arte transmite seu reconhecimento e respeito pela cultura de quem originalmente são donos da terra. “Admiro a visão de mundo dos indígenas e faço questão de compartilhar essa admiração com a cidade. É uma afronta ao sistema que quer que tenhamos outra interpretação dos índios, uma interpretação ignorante e demonizada, para que possam se aproveitar desse desconhecimento da sociedade e destruir sua cultura e suas terras”, explica Raiz.
Sua apreciação por povos nativos está atrelada a vivência do artista na Vila Pitinga, interior do Amazonas, situada dentro da reserva indígena Waimiri Atroari. Mesmo depois do contato com vida urbana, quando se mudou para cursar Engenharia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Raiz voltou a morar no interior: desta vez nas margens do rio Negro, onde o tempo de vivência com a natureza lhe inspirou a direcionar ainda mais seus traços à cultura indígena e a representação de sua cultura e espiritualidade.
Em 2016, o artista fez uma turnê pelo Alto Solimões e realizou um mural com as principais etnias locais na zona rural de Atalaia do Norte, onde se encontra a maior quantidade de povos isolados do país, na fronteira com Peru e Colômbia. Realizou trabalhos por Benjamin Constant, Atalaia do Norte, Tabatinga, Tefé e uma oficina de pintura em Letícia, na Colômbia. Ainda neste ano, se aliou ao Greenpeace junto ao povo Munduruku na campanha contra a construção do complexo de hidrelétricas no Rio Tapajós, desenvolvendo murais de alerta sobre os impactos dessas grandes obras na Amazônia.
“A vivência com os índios faz você conhecer você mesmo, faz você ter uma outra visão, um parâmetro da sua própria vida, dessa vida ocidental da cidade, a gente vê que faz muito mal o uso do tempo e essas coisas que a gente esqueceu porque perdemos o contato com a natureza. A vivência com os índios resgata tudo isso de cuidar melhor do próximo, do ambiente que você vive pois o movimento é contínuo, você dá e você recebe, você ama e você é amado e assim é com a natureza”, descreve sua experiência.
Do interior para o mundo – Criado na vila de mineração Pitinga, dentro da reserva indígena Waimiri Atroari, Rai Campos, ou melhor, Raiz, teve sua primeira influência artística com seu pai que trabalhava na mina e era o pintor da comunidade, onde desenvolvia belos quadros em tinta óleo à serigrafia e letreiros.
O artista conheceu o graffite em uma revista de skate aos 11 anos e, desde então, riscava todos os seus cadernos com tags, bombs e personagens. Foi aos 14 anos que conseguiu suas primeiras latas de spray com as quais fez seus primeiros grafites nas paredes de seu quarto.
A necessidade de continuar os estudos mudou a vida tranquila na floresta para a vida agitada no centro de Manaus. Envolveu-se com movimentos culturais da cidade, deixou a Engenharia e foi morar no Centro Cultural Nega Lisi, onde teve contato com diversas manifestações artísticas de diversos lugares do mundo.
Em 2013, Raiz fez uma turnê pela Bahia, Paraíba, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, visitando 18 cidades, estudando povos e culturas tradicionais de cada lugar por onde passou num processo de imersão artística e divulgação do grafite manauara.
Em Manaus, passou a desenvolver grandes murais de campanha de conservação de fauna, flora e dos povos indígenas, com destaque para a campanha pelos corredores ecológicos da cidade de Manaus e preservação do sauim-de-coleira.
O artista produziu grandes murais junto com outros grafiteiros, no Viaduto Gilberto Mestrinho, na Zona Leste de Manaus, ganhando amplo destaque na mídia local e internacional ao se destacar no top 3 (entre 5) das redes sociais da Gráfica Mestiza, especializada em divulgar arte urbana de países da América Latina.
Mural por Raiz Campos e Eder Muniz
Atualmente, Raiz cursa Artes Visuais na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), buscando uma forma de aprender e aprimorar técnicas. O artista faz divulgação em suas redes sociais próprias podendo ser acessadas pelo Facebook, no endereço Raiz Campos ou no Instagram, com o usuário @raiz.campos.
Veja nossa entrevista com Raiz Campos :
1 – Como surgiu seu interesse pela arte ?
Não tem um momento em que esse interesse surgiu, porque sempre tive muito contato com a arte, sempre fui influenciado pelo meu pai que é artista. Ele sempre colocou a disposição muitos materiais e conteúdos para criar essa convivência tanto com a pintura, quanto com a música, e assim desenvolvesse minhas habilidades artísticas.
2 – O que te influenciou a ser um artista ?
A arte me levou a conhecer um mundo mais humano, mais sensível e isso foi me colocando em contato com muitas pessoas e lugares bacanas. Isso tudo foi me influenciando. O que a arte foi me trazendo, para onde ela foi me levando, foi a coisa que mais me fortaleceu para que eu me tornasse um artista e seguisse nessa linha.
3 – Como foi o início e quais as barreiras que você enfrentou ?
O início foi bem difícil porque eu comecei a pintar em um município do interior do Amazonas que nem existia graffite. Eu vim conhecer o graffite com 14 anos, através de uma revista e foi de lá que comecei a me inspirar e a treinar pelas imagens que via na revista. Não tinha ninguém que entendesse do assunto e a internet era muito lenta para acessar mais informações, então tive que me virar sozinho pegando a manha do spray e da tinta como base.
O material também era muito escasso e difícil a época. Outra dificuldade ainda, foi a aceitação da família, principalmente por não ouvir falar sobre nenhuma garantia de estabilidade que a arte poderia me trazer. Era essa a reação das pessoas que desconheciam sobre a arte urbana e colocavam barreiras dizendo que não ia dar certo, mas as dificuldades estão aí para serem vencidas.
4 – Quando consolidou seu estilo ?
Não tenho nenhum estilo consolidado. Considero que meu estilo está evoluindo junto comigo, de acordo com minha consciência e com o que vou aprendendo e vivendo. Meu estilo está em plena transformação, sempre evoluindo. O que posso dizer é que ele carrega bastante a temática indígena e a temática amazônica, isso é algo que consolidado no meu estilo.
5 – De onde buscou referências para seu estilo ?
Minhas maiores referências são os artistas de Manaus. Gosto muito de acompanhá-los e de usá-los como referência, pois eles pintam nossa própria cultura e falam sobre nossos lugares e nossos problemas, então eu tenho muito eles como referência. Artistas latino-americanos e artista que pintam a Amazônia em outros países, também são minhas referências, além da arte indígena, desde a grafia, os padrões geométricos e os elementos da natureza. Isso tudo é minha inspiração.
6 – O que te inspira nas suas criações ?
A natureza, as plantas, os animais, os povos nativos, todo esse contexto amazônico me inspira.
7 – Qual sua combinação de cores predileta ?
Todas as cores eu me interesso, mas tenho mais admiração pelo verde. Como fui criado na floresta amazônica, o verde está sempre na minha cabeça. Para onde eu olhava, quando era pequeno, via verde: nas árvores, nas gramas, em todo lugar. Isso sempre foi minha referência, já que na cidade a gente vê muitos tons opacos, muitos tons cinza, o que é colorido as pessoas não pintam novamente, fica um colorido sujo. Eu pinto com verde para contrastar com esses tons da cidade, para remeter a Amazônia e remeter a floresta que havia aqui antes de ser transformada em concreto.
8 – Quais são seus artistas prediletos?
O Guerreiro, meu pai, é meu artista predileto. Vejo todo o esforço do trabalho dele com muito orgulho e tenho muita vontade de ser que nem ele, ter sua dedicação artística e seu empenho. Também admiro muitos grafiteiros do Brasil e de Manaus, como Arab, Lobão, os trampos do Adonai, mas, em geral, admiro muito a arte dos artistas amazonenses, não só grafiteiros, mas artistas plásticos e escultores também. Isso foi algo que o grafite me trouxe: o interesse em aprender e admirar outros tipos de arte.
9 – Quais foram as coisas boas que sua arte te trouxe ?
A arte só me trouxe coisa boa. Enquanto andei com arte tive tudo que sempre quis e sempre sonhei, que foi ter uma vida feliz. E as coisas que vieram só foram me fazendo feliz. A arte fez com que eu conhecesse outros estados, conhecesse outras cidades, lugares lindos e lugares que estão passando por muita dificuldade. A arte me levou a muitos extremos. Aqui mesmo em Manaus já pintei em lugares super pobres e também em apartamentos super luxuosos. Isso é um conhecimento muito bom para a minha vida, de conviver com todo tipo de personalidade, de pessoa, de ambiente. De entrar e sair em paz. Isso é uma coisa que eu gosto muito do universo que eu vivo, de poder entrar e sair em paz de muitos ambientes.
A arte também fez com que eu conhecesse muitos amigos de verdade. Amigos que me apoiam, que acreditam no meu sonho, que não só escutam eu sonhando mas que também se esforçam para que se torne possível e isso é uma coisa muito legal. Também me fez conhecer minha companheira, que é uma pessoa muito especial, que embarcou no meu sonho junto comigo e eu embarco no sonho junto com ela. A gente tenta realizar um o sonho do outro e vários sonhos juntos.
Me trouxe também uma paz muito grande comigo mesmo, de estar fazendo aquilo que eu deveria estar fazendo. Se eu fosse outra coisa na vida não faria tão bem quanto eu faço arte.
10 – O que ainda não fez artisticamente e gostaria de fazer ?
Gostaria muito de pintar um prédio, participar de algum evento internacional, também tenho vontade de fazer uma exposição solo.
11 – Se você não fosse artista o que você gostaria de ser ?
Se eu não fosse artista gostaria de ser algo ligado a natureza. Talvez um antropólogo e estudar os índios, ou estudar a conservação do ambiente, a fauna e flora. Queria estar sempre em contato com as belezas naturais, principalmente aqui na nossa Amazônia.
12 – Deixe uma mensagem para nossos leitores.
“A mensagem que tenho forte dentro de mim e gostaria de passar é “nunca desista daquilo que você acredita”. Acredite sempre naquilo que seu coração estiver te chamando, que for bom, que faça o bem aos outros e que você faça com dinheiro ou não. Acredite nisso, porque talvez seja para isso que você nasceu pra fazer. Fazer o que a gente nasceu pra fazer é a coisa mais satisfatória do mundo e deve estar sempre em equilíbrio e em contato com algo muito maior.”
Veja mais alguns de seus murais abaixo :