Na próxima terça (17), a pesquisadora Lúcia dos Prazeres lança publicação na qual reúne narrativas sobre música, dança, espiritualidade e sagrado permeadas pelo encontro no Pátio de São Pedro. Se um lugar representa os valores e a cultura da África preservados no Recife, esse seria o Pátio de São Pedro, no bairro de Santo Antônio, local onde há duas décadas acontece a Terça Negra. Essa é a conclusão a que chegou a educadora Lúcia dos Prazeres, analisando as relações visíveis e invisíveis possibilitadas pelo encontro de cultura negra na capital pernambucana, e registradas no livro “Terça Negra no Recife: Narrativas sobre Dança, Música, Espiritualidade e Sagrado”, que será lançado em edição especial da Terça Negra. A noite, que marcará também o início das comemorações dos 20 anos do festejo, terá apresentações do Maracatu Estrela Dalva, do Afoxé Omô Inã e do grupo de samba reggae Raízes de Quilombo.
A publicação, fruto do mestrado da pesquisadora em Ciências da Religião, na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), reúne histórias sobre o fortalecimento da identidade, cultura e espiritualidade de afro-pernambucanos, vividos a partir da Terça Negra. Dividido em cinco capítulos, o livro costura as narrativas de 12 personagens que transformaram a experiência do povo negro no Recife e tiveram suas próprias histórias fortalecidas pelos encontros de música e dança no Pátio de São Pedro. São nomes como Vera Baroni, militante do movimento negro e integrante da Casa de Religião de Matriz Africana, Ylê Obá Aganju Ocoloiá; Marta Almeida, militante negra, coordenadora do Movimento Negro Unificado de Pernambuco; Frei Tito, Doutor em Antropologia, com experiência em Antropologia da Religião; e Elza Maria Torres da Silva, sacerdotisa de matriz africana conhecida como Mãe Elza.
Foto: Rafa Medeiros
Quando trata de música como território de ancestralidade, um dos relatos apresentados pela autora é o de Adeildo Araújo Leite, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), que reconheceu sua identidade negra a partir das festas que participava com seu pai, mestre de ciranda e cantador de coco de roda, quando ainda criança. “Foi esse ambiente que o fez descobrir sua negritude, a potência de seu corpo e dos ensinamentos repassados a partir daquela brincadeira”, explica Lúcia. Essa consciência possibilitou que Adeildo já adulto, enquanto presidente do MNU, tivesse a ideia de criar um espaço no centro da cidade que propiciasse o encontro e a troca de experiências entre quem atuava nas comunidades, com o povo e a cultura negros. Foi assim que no ano 2000 aconteceu a primeira edição da Terça Negra, então no Pagode do Didi. Com o tempo, o espaço ficou insuficiente para comportar a quantidade de pessoas, e depois de muito pleito, em novembro de 2001, a Terça Negra teve seu primeiro momento no Pátio de São Pedro.
De lá pra cá, passaram pelo evento no Pátio de São Pedro mais de 300 grupos, entre afoxés, maracatus, grupos de samba, dança, hip hop, coco, bandas de samba reggae e mangue beat. Enquanto a Terça Negra possibilitou o encontro das pessoas com a força de sua cultura e o reconhecimento de sua identidade, isso reverberou no surgimento de mais iniciativas. Se no início, havia apenas cerca de cinco afoxés, atualmente são mais de 35 em plena atividade na cidade.
Foto: Rafa Medeiros
Foi nessa efervescência de música e dança da Terça Negra que, em 2004, Vera Baroni teve um encontro transcendente com a sua ancestralidade. Na entrevista para Lúcia, registrada na pesquisa, Baroni contou que foi na apresentação do Afoxé Oyá Alaxé – posteriormente renomeado como Oyá Tokolê Owo -, que ela recebeu o Idé, bracelete utilizado por Iansã. “Por meio de sua música e dança, o afoxé transmite para as pessoas as energias da mitologia africana. É isso que o afoxé faz. No relato de Vera, ela confessa que antes ela tinha um certo receio com a religião de matriz africana, e naquele momento em que ela recebeu o elemento de Oyá todo o medo que ela tinha acabou. Ela identifica que foi a dança que fez com que ela se reconectasse com uma história que havia perdido”, conta.
Ao longo da pesquisa, Dos Prazeres percebeu que, embora os grupos tenham à frente homens, muitos são dirigidos pelas mulheres, e estas estão conectadas e fortalecidas pelas relações com a espiritualidade e o sagrado. A espiritualidade pode ser encontrada na história de Conceição dos Prazeres, filha de Yemanjá, fundadora do projeto cultural Terça Negra, que em suas vivências conseguia manter unidos e fortalecidos os grupos envolvidos com a realização do evento. Uma das narrativas do sagrado é a de Dona Janete, atual presidente do Maracatu Leão Coroado, que junto à sua calunga, “Dona Isabé”, encontra forças para conduzir o grupo, fundado nas imediações do Pátio de São Pedro.
Foto: Rafa Medeiros
Ainda que a linha entre um e outro sejam tênues, Lúcia explica que a espiritualidade diz respeito a uma relação reconhecida pelos ambientes e códigos sociais. Já o sagrado, vai além: “Quando se fala da relação com o sagrado, se fala de como uma pessoa comunga, se conecta, com uma força que não é vista, que não é palpável, é sentida. Esse sagrado não está só no espaço religioso, ele permeia também o espaço de trabalho. O sagrado é qualquer movimento interior que lhe leve à transcendência. Então, uma música pode lhe elevar a tal ponto que você atinge outra dimensão. E esse sagrado eu encontrei na Terça Negra, já no percurso da pesquisa”, explica.
A dissertação possibilitou que Dos Prazeres percebesse na Terça Negra o encontro de todos esses níveis de relações, de maneira integrada e complementar. Em um trecho do livro, a autora descreve o encontro como sendo um “laboratório de produção, realimentação e disseminação de conhecimentos e saberes artísticos, culturais e religiosos oriundos da herança africana de nossos ancestrais. Conhecimentos e valores ressignificados pelas experiências vivenciadas nos bairros/sedes das entidades participantes da Terça Negra, que se alimentam e ao mesmo tempo são disseminadoras dessas ações para todos os grupos do Recife/Região Metropolitana/Pernambuco na perspectiva da formação de um grande território de cultura negra, com base nos valores civilizatórios africanos”.
Foto: Rafa Medeiros
Sobre a autora – Nascida e criada e no Morro da Conceição, na Zona Norte do Recife, Lúcia dos Prazeres, é pedagoga, com mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco, e tem duas especializações: em Educação e Psicomotricidade e em Arteterapia e Linguagens Corporais. Desde cedo, aprendeu a valorizar os saberes preservados pelos afro-descendentes, assimilando os ensinamentos e o repasse de histórias por meio da valorização do outro, da cultura popular, da contação de histórias e dos significados de sonhos e provérbios.
Lançamento do livro “Terça Negra no Recife: Música, Dança, Espiritualidade e Sagrado”, de Lúcia dos Prazeres, com apresentações do Maracatu Estrela Dalva, do Afoxé Omô Inã e do grupo de samba reggae Raízes de Quilombo.
Terça-feira, 17 de Dezembro, a partir das 19h no Pátio de São Pedro, bairro de Santo Antônio, Recife – PE.